Dereitos sexuais e reprodutivos: oficinas com mulheres sobrevivientes do cárcere em tempos de pandemia
As oficinas de Direitos Sexuais e Reprodutivos com mulheres sobreviventes do cárcere e suas familiares ocorridas entre junho e setembro de 2021 são fruto de uma parceria anterior entre o Grupo Curumim Gestação e Parto e o coletivo Liberta Elas. Ainda em dezembro de 2020, as organizações situadas na cidade de Recife somaram forças e saberes para derrubar alguns muros e construir pontes entre ativistas feministas, antirracistas, abolicionistas e mulheres que sobreviveram ao cárcere de Pernambuco, nordeste do Brasil.
Dessa mistura de lutas pela liberdade veio a ideia de organizar oficinas sobre saúde sexual, reprodutiva e direitos com mulheres sobreviventes do cárcere e familiares. A experiência começou virtualmente pois a Covid-19, ainda em curso no Brasil, não possibilitou encontros presenciais. Foi por conversas e reuniões em aplicativos de celular, redes sociais e telefone que nos organizamos e conseguimos concluir doze encontros virtuais com duração de 2 horas em média, com um grupo de cerca de quinze mulheres. As oficinas foram tão bem sucedidas que o grupo formado demonstrou o desejo de continuar junto, principalmente pelo aprofundamento da pandemia. O desemprego e fome vem nos exigindo, mais do que nunca, um maior suporte financeiro e emocional para as participantes.
Cabe destacar que desde março de 2020 os cárceres de Pernambuco proibiram a entrada de familiares, movimentos sociais, grupos religiosos e de assistência como medida de contenção do coronavírus. Na mesma época, o Conselho Nacional de Justiça publicou a Recomendação n.62 que, entre outras medidas, orienta aos magistrados de todo o país a concessão de saída antecipada de mulheres em regime fechado e semiaberto, priorizando gestantes, lactantes, mães e mulheres do grupo de risco da Covid-19. Muitas das mulheres que participaram das oficinas iniciadas em 2020 haviam se beneficiado dessa medida e saído há poucos meses do sistema prisional. Grande parte não contava com uma rede de apoio para abrigamento, alimentação, entre outras necessidades fundamentais.
No Brasil, o encarceramento feminino cresceu mais de 600% entre 2000 e 2016, colocando-nos em quarto lugar entre os países que mais aprisionam mulheres no mundo. As mulheres encarceradas representam uma população historicamente vulnerabilizada e criminalizada pelo Estado. Em Pernambuco, essa população é composta por 86,30% de mulheres negras e pardas, 45,70% de jovens e 85,58% não completaram o ensino médio (Infopen/2018).
Com a aprovação do projeto do CLACAI, conseguimos dar continuidade às atividades em junho de 2021, com oficinas voltadas à formação e ao acompanhamento
da saúde sexual e reprodutiva de mulheres sobreviventes do cárcere pernambucano e suas familiares. O grupo inicialmente foi formado por dezessete mulheres que haviam participado das oficinas anteriores e outras sobreviventes do sistema prisional. Durante três meses de oficinas, as participantes receberam ajuda de custo mensal e recurso semanal para acessar à internet nos dias dos encontros. Posteriormente, outras três mulheres sobreviventes do sistema prisional pediram para participar das oficinas, mesmo sem o recebimento da ajuda financeira. Nessas articulações, uma das participantes das oficinas iniciadas em 2020 que havia passado pela experiência de privação de liberdade, atuou diretamente na mobilização do grupo de mulheres que fez parte dessa nova etapa de oficinas, sendo remunerada por meio de recursos do projeto. Além disso, foi oferecido às participantes acompanhamento psicológico individual para aquelas com interesse em iniciar o processo de terapia com a psicóloga do Liberta Elas. De maio de 2021 até o final do projeto, foram realizados vinte atendimentos psicológicos.
Em junho de 2021, as oficinas virtuais iniciaram com um grupo de vinte participantes com quem durante doze encontros debatemos sobre história da vida sexual e reprodutiva, liberdade, papeis de gênero, anatomia e fisiologia do sistema sexual e reprodutivo em uma abordagem feminista e violência contra a mulher no cárcere. Um
importante momento do projeto foi a participação de Daniele Brás e Mirtes Renata, integrantes do Grupo Curumim que realizaram uma oficina sobre racismo estrutural e seus impactos na saúde. Na ocasião, Mirtes compartilhou sua história de vida em que o racismo marcou tragicamente a morte do seu filho Miguel, causada por abandono de incapaz por Sari Corte Real, dona da casa em que Mirtes era trabalhadora doméstica.
Outra importante articulação foi a realizada com o Núcleo de Execução Penal da Defensoria Pública de Pernambuco. O coordenador do núcleo, Michel Nakamura e a assessora Paula Ferreira, participaram de uma oficina com o objetivo de aproximar a instituição das mulheres sobreviventes, dialogando sobre o papel da defensoria pública, além de tirarem dúvidas sobre situações jurídicas específicas das participantes.
No planejamento das oficinas também optamos por juntar o grupo às formações internas da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, realizadas uma vez ao mês. A Agenda é uma organização da sociedade civil que reúne diversas entidades de todo o país, inclusive o Liberta Elas, atuando na luta anti prisional e na defesa de um programa popular de desencarceramento e desmilitarização. Os temas dessas formações tratam sobre as relações entre cárcere, racismo, gênero, entre outros assuntos, e os encontros continuarão a acontecer até o final deste ano.
Do grupo das vinte participantes das oficinas realizadas pelo Grupo Curumim e Liberta Elas, 69% são mulheres que têm até 30 anos e 53,8% delas se identificam como pardas, 30,8% como negras e 15,4% como brancas. Em relação à escolaridade, 77% possuem até o ensino médio incompleto e todas querem voltar a estudar. No que
concerne aos territórios, cerca de 90% residem nas periferias das cidades de Recife, Olinda, Jaboatão dos Guararapes e Abreu e Lima, todas localizadas em Pernambuco. Quanto à maternidade, 84,6% possuem filhas/filhos com idade entre 1 mês a 18 anos de idade, sendo que 30% delas relataram situações de violência obstétrica.
Além disso, depois de passar pelo sistema prisional 63,6% desenvolveram alguma doença física ou mental, entre elas depressão, ansiedade, infecção urinária, problemas no sistema reprodutivo, pressão alta, abortamentos espontâneos, doenças no pulmão e Covid-19.
Durante os debates nas oficinas, fica evidente a falta de estrutura das unidades prisionais não só em relação à saúde da mulher, como também na ausência de uma preparação dessas mulheres para a sobrevivência na vida extra muros. Esse descaso do estado fica explícito na falta de informação de muitas participantes sobre seus direitos, deveres e acesso aos serviços públicos. Nesse sentido, é essencial a manutenção dessa rede de comunicação e fortalecimento entre ativistas feministas, abolicionistas, antirracistas e sobreviventes do cárcere.
Artículo final en el marco de la subvención otorgada por Clacai a GRUPO CURUMIN, BRASIL.